A aprovação da urgência para o projeto de anistia na Câmara dos Deputados, com 311 votos favoráveis e 163 contrários, não representa um gesto de reconciliação nacional. Representa, isso sim, mais um movimento calculado de Brasília — onde o poder se articula com precisão cirúrgica, indiferente ao clamor das ruas. A capital segue firme, blindada, como se nada pudesse abalá-la.
Mesmo diante da articulação internacional de figuras como Eduardo Bolsonaro e Paulo Figueiredo nos Estados Unidos, os três poderes brasileiros permanecem alinhados. O ensaio prévio à votação da urgência e a reunião entre Paulinho da Força, Michel Temer e Aécio Neves para redesenhar o projeto — agora sob o nome de “Dosimetria” — revelam que a anistia geral e irrestrita está sendo cuidadosamente esvaziada. O foco não é mais o perdão, mas o controle das consequências.
Emendas, urgência e silêncio estratégico
Na mesma semana em que o projeto ganhou velocidade, o governo Lula liberou R$ 3,2 bilhões em emendas parlamentares. O pagamento recorde de R$ 2,3 bilhões em um único dia beneficiou partidos que votaram pela urgência. Mesmo com orientação contrária do governo, partidos com ministérios foram responsáveis por mais da metade dos votos favoráveis. Brasília não trabalha com coincidências — trabalha com acordos.
O centrão assume o comando da trama
O que começou como uma proposta de anistia ampla foi rapidamente capturado por forças experientes do centrão. Paulinho da Força (Solidariedade), Michel Temer (MDB) e Aécio Neves (PSDB) se reuniram para redesenhar o projeto, rebatizando-o como “Dosimetria” e assumindo o controle do conteúdo. A reunião ocorreu na casa de Temer, em São Paulo, e contou com articulações paralelas com ministros do STF.
A mudança de nomenclatura não é detalhe técnico. É sinal de que a proposta original foi desidratada e transformada em instrumento político. A anistia cede lugar a uma dosimetria seletiva, calibrada para preservar estruturas de poder e minimizar danos eleitorais. O foco não é justiça — é gestão de consequências.
Aécio Neves tem sido enfático: a anistia ampla é inconstitucional. Ele defende que o projeto mire apenas os envolvidos de menor gravidade, sem alterar o status jurídico de Jair Bolsonaro. Michel Temer, por sua vez, propõe um “pacto republicano” entre os Três Poderes e a sociedade civil, e atua como conselheiro político da nova proposta.
Hugo Motta e Davi Alcolumbre: os presidentes das Casas
Hugo Motta (Republicanos), presidente da Câmara, foi quem pautou a urgência do projeto. Em suas palavras, o Brasil “precisa de pacificação” e o plenário é soberano para decidir. Motta indicou Paulinho da Força como relator e tem articulado com o STF e o Executivo para construir um texto que não seja vetado.
Já Davi Alcolumbre (União Brasil – União Progressista), presidente do Senado, declarou que não aprovará uma anistia ampla. Seu texto alternativo está pronto e pode ser apresentado caso a Câmara não avance com equilíbrio. Alcolumbre defende a redução de penas para casos de menor gravidade, mas sem absolvições — e sem blindagem a Bolsonaro.
O voto e a ilusão partidária
Diante desse cenário, é essencial que o eleitor compreenda que o poder político não se organiza apenas por siglas — mas por articulações. O centrão, hoje protagonista da trama da dosimetria, atua com profundidade institucional e influência transversal. Mas esse tipo de movimentação não se limita aos bastidores de Brasília — ela se reflete nas urnas.
É cada vez mais comum encontrar candidatos conservadores em partidos de centro, e candidatos de centro em partidos que se apresentam como de direita. O rótulo partidário já não garante coerência ideológica. Por isso, o eleitor precisa ir além da legenda: é preciso analisar o histórico, os posicionamentos e as alianças de cada candidato.
A engenharia política que hoje molda a dosimetria é a mesma que pode definir o futuro das cidades, dos estados e do país. Votar com consciência exige atenção aos nomes — não apenas às bandeiras. Porque em tempos de articulações silenciosas, nem tudo que parece é.
Nada abala Brasília — nem o povo, nem o mundo
As sanções e taxações impostas por Donald Trump não parecem ter surtido efeito. O sistema político brasileiro, em sua maioria, parece decidido a enfrentar a maior potência mundial em nome da “soberania nacional”. Enquanto isso, o sofrimento dos presos e perseguidos políticos se arrasta, e parte de toda uma nação segue à margem. O sistema está sempre um passo à frente — uma força devastadora, silenciosa e implacável.
Tudo isso acontece enquanto a economia aperta o povo de outras maneiras: planos de monitoramento para arrecadar mais, dívida pública em alta, endividamento das famílias batendo recordes, saúde precária, insegurança crescente, mercado enfraquecido. O cenário é de caos iminente — e Brasília segue intacta.
Sem Anistia, sem alívio — apenas encenação
Brasília vive os interesses de Brasília. O que pauta o Congresso e o Supremo não é justiça, liberdade ou pacificação — é cálculo. O povo brasileiro anseia por equilíbrio, mas as concessões feitas pelos supremos poderes residentes na capital — Executivo, Legislativo e Judiciário — costumam ser estratégicas, condicionadas e relativas. Parecem boas à primeira vista, mas frequentemente servem para preservar o status quo.
Comemorar antes do jogo acabar é falsa alegria. Pode gerar decepção e agravar a crise. O correto é manter a pressão por justiça plena, liberdade dos inocentes e pacificação real — não aquela que serve apenas aos interesses eleitorais.
Por Miriam Melchiori – Colunista do Município News
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