Por Fernando Capez, para o Município News
Este artigo foi publicado originalmente na coluna “Controvérsias Jurídicas” do site ConJur e está sendo reproduzido no Município News com autorização do autor, Fernando Capez.
A denúncia do ex-presidente Jair Bolsonaro e outros não poderia ter mencionado a delação de Mauro Cid porque, conforme já demonstrado em artigo anterior publicado na ConJur, ela não foi voluntária, mas derivada de pressão psicológica irresistível, além de ter sido objeto de consentimento do próprio delator, o qual disse ter sido solicitado a relatar fatos dos quais não tinha conhecimento.
No referido texto, demonstramos a cronologia entre a prisão, a proibição de contatos de Mauro Cid com seus familiares e, imediatamente após a restrição desses contatos, a sua delação. Consta, ainda, reportagem da revista Veja na qual Cid relata ter sido pressionado para confirmar a versão já apresentada por seus inquisidores.
No presente artigo, analisaremos agora a ilegalidade da prisão preventiva de Mauro Cid, a qual deu início à sequência de atos de coação psicológica, ao cabo dos quais o delator decidiu, segundo ele próprio admitiu, falar sobre coisas de que não tinha conhecimento. A decretação de sua prisão preventiva em 23 de abril de 2023 foi fundamentada apenas em conjecturas e referência a fatos passados, ou seja, sem a apresentação de elementos idôneos e sem contemporaneidade. Esse tipo de prisão provisória, imposta com base em mera suspeita ou vagas possibilidades viola a CF, o Código de Processo Penal e cria precedente perigoso para a jurisprudência em todas as instâncias. O caráter genérico e impreciso da decisão é revelado pelo número de vezes em que as expressões “possível”, “possibilidade” e “risco” são empregadas, sempre desacompanhadas da descrição individualizada e específica. Confira-se:
“(…) a liberdade dos representados gera risco em razão de possível emissão de certificados falsos (…). Atente-se, ainda, ao risco de ocultação de provas que possam melhorar a investigação criminal” (pág. 59 da decisão).
Tais expressões vagas indicam que a liberdade individual foi cerceada com base em ilações e, como adiante se verá, motivada exclusivamente para obter a delação. A decisão não descreve nenhuma ação real, efetiva e atual voltada para destruição ou ocultação de provas. Fala genericamente sobre riscos e possibilidades. Em outro trecho, também é possível notar a ausência de contemporaneidade, quando a decisão faz referência ao já ultrapassado período da pandemia e emprega tempos verbais no pretérito. Além disso, limita-se a solicitações jurisprudenciais genéricas e ilações, e ainda faz referência expressa ao passado, ao usar a expressão “em pleno período pandêmico” (2020, três anos antes da prisão).
Quando se refere a uma suposta organização criminosa, o decisório mais uma vez se serve de generalidades, sem apontar indícios concretos e sem referência à atualidade dessa organização.. O termo “organização criminosa” busca alcançar as grandes estruturas mafiosas externas ao tráfico ilícito de drogas e armas, e ao comércio sexual de seres humanos, entretanto, atualmente vem sendo empregado de forma abusiva. Tal emprego vulgarizou-se após a edição da Lei nº 12.850/13 e virou apanágio para autorizar qualquer prisão provisória. No caso de Mauro Cid, a decisão não descreve nem identifica quais seriam os riscos atuais e efetivos, nem aponta fatos que estariam sendo lesões contemporaneamente a motivadas pela alegação de tais riscos. Ao recorrer a expressões como “organização criminosa articulada”, faz substituir a necessidade de descrição de fatos atuais e preconceitos correlatos, pelo emprego de técnica discursiva, além de, novamente, empregar o tempo verbal futuro do pretérito, em clara alusão hipotética. Carece ainda de contemporaneidade quando se refere a “(…) uma organização criminosa articulada…em pleno período pandêmico”.
Antecipação de pena
Na contramão da decisão, o Pacote Anticrime exige contemporaneidade para a prisão preventiva, na revisão da instrução do próprio STF e STJ. Dispõe o artigo 315, § 1º, CPP, que, “o juiz deverá indicar concretamente a existência de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida imposta”. Índices concretos e individualizados não se confundem com ilações, suposições ou conjecturas. Além disso, as ocorrências passadas não são admitidas como fundamento para a prisão preventiva. Impor uma medida cautelar tão extrema sem demonstrar a existência da situação de perigo, gerada pelo comportamento do imputado, equivale a desvestir a medida de sua natureza cautelosa e impor antecipação de pena antes mesmo da denúncia. Nesse ponto, o artigo 313, § 2º, do CPP não poderia ser mais explícito:
“Não será admitida prisão preventiva com finalidade específica de antecipação de cumprimento de pena”.
A contemporaneidade exige a efetiva da demonstração de que, mesmo com o transcurso de tal período, continuem presentes os requisitos da prisão preventiva, posição do STF [3]. Em outro artigo publicado recentemente na ConJur, tivemos a oportunidade de expor importante acórdão relatado pelo eminente ministro Dias Toffoli, relativo aos abusos da operação “lava jato”: “A Suprema Corte decidiu que o colaborador deve estar livre de pressão exercida por meio de prisões ilegais, qualificando as delações assim obtidas como ‘verdadeira tortura psicológica, um pau de arara do século 21’. Em outro acórdão, o STF, ao julgar o HC nº 127.483/PR, concluiu: ‘Assim, é manifestamente ilegítima (…) a prisão temporária ou preventiva, que têm por especificamente obter a colaboração ou a confissão do imputado”.
Em reforço a esse entendimento, o ex-ministro Marco Aurélio declarou: “Não cabe prender uma pessoa para fragilizá-la para obter a delação” (palestra proferida 12/08/2016 no 7º Congresso Brasileiro de Sociedades de Advogados). O ministro Gilmar Mendes também acentuou enfaticamente que: “Ainda anteontem, o ministro Nefi Cordeiro disse, no STJ [Superior Tribunal de Justiça], que a prisão do delator ou a delação feita por alguém preso, de fato, sugere uma tortura” (palestra proferida no Senado em 17/10/2019).
No caso presente, como já visto, a prisão foi ilegal porque sua decretação não se fundamentou em fatos concretos e veementes de algum fato específico e individualizado capaz de colocar em risco a ordem pública, de fuga ou de tentativa de atrapalhar a investigação. A decisão careceu de fundamentação idônea. Além disso, os fatos que motivaram a prisão não são contemporâneos e, por expressa disposição legal, não podem autorizar a decretação da custódia cautelar. E ainda, a decisão descumpriu os artigos 282, § 6º, do CPP, segundo o qual “a prisão preventiva somente será determinada quando não for cabível a suas substituições por outra medida cautelar, observada o artigo 319 deste Código”.
Nenhuma justificativa foi apresentada sobre o não cabimento de medidas cautelares diversas. Finalmente, de forma inusitada, imediatamente após o acordo de colaboração premiada, Mauro Cid é solto, como se um passe de mágica, a situação de perigo e todo o risco à sociedade subitamente desaparecerem. Nesse contexto, diante da ausência dos requisitos de motivação idônea e demonstração concreta de uma situação contemporânea indicativa da real necessidade da medida, a conclusão é a de que a prisão preventiva de Mauro Cid foi ilegal e decretada com o fim exclusivo de obtenção de sua delação. Isso a torna nula de pleno direito.
Segundo o ensinamento de Rodrigo Capez [4], doutor pela USP e que atuou como juiz instrutor do STF durante muitos anos: “É manifestamente ilegítima, por ausência de justificação constitucional, a adoção de medidas cautelares de natureza pessoal, notadamente a prisão temporária ou preventiva, que tenham por finalidade obter a colaboração ou confissão do imputado, a pretexto de sua necessidade para a investigação ou a instrução criminal” [5].
A prisão preventiva de Mauro Cid é nula porque contraria os seguintes dispositivos do Código de Processo Penal: artigos 282, § 6º; 312, caput; 312, § 2º; 313, § 2º; 315, § 1º; 315, § 2º, I a V; 316, parágrafo único e 321; e a Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, conhecida como Pacote Anticrime, além de vulnerar os princípios constitucionais do estado de inocência e devido processo legal. Nula a prisão, nula será a delação dela decorrente, face ao princípio da sequencialidade (CPP, artigo 573, § 1º).
Para mais detalhes e referências, confira o artigo original publicado na Conjur.
Fernando Capez é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.